quinta-feira, 5 de março de 2009

O Mundo em que Vivemos

Resenha publicada na edição de setembro de 2008 da Revista Shambala Sun (traduzida para a língua portuguesa por Fernando Domicildes Carvalho para a Comunidade Budista Plena Consciência)
É somente quando combinamos a nossa preocupação com o planeta em que vivemos com uma prática espiritual, é que poderemos realizar as necessárias e profundas mudanças para tratar da crise ambiental que se avizinha. No seu mais recente e importante livro, The World We Have (O mundo em que vivemos), Thich Nhat Hanh nos oferece os princípios orientadores para uma nova "ecoespiritualidade" do viver plenamente consciente.
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Vivemos como sonâmbulos, não sabendo o que estamos fazendo e nem para onde nos dirigimos. Se vamos despertar ou não, depende da nossa decisão de caminhar plenamente consciente sobre a nossa Mãe Terra. O futuro de toda a vida, inclusive a nossa própria vida, depende dos nossos passos plenamente conscientes.Temos que ouvir os sinos da plena consciência que estão ressoando através de todo o nosso planeta. Temos que começar a aprender como viver de forma que o futuro seja possível para os nossos filhos e para os nossos netos. Após uma longa reunião com o Buddha, eu o consultei sobre a questão doaquecimento global e os ensinamentos dele são muito claros. Se continuarmos a viver como estamos vivendo, consumindo sem pensar no futuro, destruindo as nossas florestas e emitindo gases causadores do efeito estufa, então devastadoras mudanças climáticas serão inevitáveis. A maior parte de nosso ecossistema será destruída. O nível das águas dos mares subirá e as cidades costeiras serão inundadas ocasionando a saída de centenas de milhões de seres dos seus lares, gerando guerras e o surgimento de doenças infecciosas.Precisamos de uma espécie de despertar coletivo. Há entre nós humanos homens e mulheres que já estão despertos, mas isto não é o suficiente. As grandes massas de indivíduos ainda estão dormindo. Eles não podem ouvir o soar dos sinos.Construímos um sistema que não podemos controlar. Este sistema se impõe sobre nós e nos tornamos escravos e vítimas dele. A maioria de nós, com o objetivo de possuir uma residência, um automóvel, uma geladeira e um aparelho de televisão deve sacrificar o seu tempo e as suas vidas para obter esses objetos. Estamos constantemente sob a pressão do tempo. Em épocas anteriores, podíamos dispor de três horas para tomar uma xícara de chá, apreciando a companhia de nossos amigos em uma atmosfera serena e espiritual. Podíamos organizar uma reunião para celebrar o desabrochar de uma orquídea em nosso jardim. Hoje, não podemosmais dispor dessas condições. Criamos uma sociedade na qual os seres ricos tornam-se mais ricos e os seres despossuídos cada vez mais despossuídos. Nessa sociedade, somos capturados pelos nossos próprios problemas imediatos de sorte que não podemos estar conscientes daquilo que ocorre com o restante da família humana em nosso planeta. Em minha mente, vejo um grupo de galinhas em uma gaiola, disputando algumas sementes de milho, inconscientes de que em poucashoras serão mortas.Os chineses, os indianos e os vietnamitas ainda estão sonhando o "sonho americano" como se este sonho fosse a meta suprema dos seres humanos – todos têm que ter um carro, uma conta bancária, um telefone celular e um aparelho de televisão. Em vinte e cinco anos, a população da China será de 1,5 bilhão de indivíduos e se cada um deles quiser dirigir o seu próprio carro, a China vai necessitar de 99 milhões de barris de petróleo por dia. Porém, a produção mundialhoje é de 84 milhões de barris por dia. Assim, o sonho americano não será possível para os chineses, para os indianos e para os vietnamitas. O sonho americano não é mais possível nem mesmo para os americanos. Não podemos continuar a viver desta forma. Esta não é uma economia sustentável.Temos que ter outro sonho: o sonho da irmandade, do amor e da compaixão e que este sonho seja possível aqui e agora. Temos o BuddhaDharma. Temos os meios. Temos sabedoria suficiente para sermos capazes de viver este sonho. A plena consciência está no coração do despertar e da iluminação. Praticamos a respiração para sermos capazes de estar no momento presente, de forma que possamos reconhecer o que está acontecendo em nós e em torno de nós. Se o que ocorre dentro de nós é a desesperança, temos que reconhecê-la e agir imediatamente. Podemos não querer enfrentar esta formação mental, mas ela é uma realidade e temos que reconhecê-la para poder transformá-la.Não temos que afundar na desesperança a respeito do aquecimento global. Podemos agir. Se somente assinamos um abaixo-assinado e nos esquecemos dele, obviamente nada mudará. Ações urgentes devem ser realizadas tanto no nível individual quanto no nível coletivo. Todos nós temos um elevado desejo de sermos capazes de viver em paz e em um meio ambiente sustentável. O que a maioria de nós ainda não possui é a forma concreta de realizar o nosso compromisso com um viver sustentável uma realidade em nossas vidas diárias. Nós não nos organizamos. Podemos responsabilizar severamente nossos lideres pelos produtos químicos quepoluem a nossa água, pela violência em nossa vizinhança e pelas guerras que destroem tantas vidas. É chegado o momento de cada um de nós despertar e agir em nossas próprias vidas.A violência, a corrupção, o abuso do poder e a autodestruição estão acontecendo em torno de nós, mesmo nas proximidades de nossos lideres tanto espirituais quanto sociais. Sabemos todos que as leis de nosso país não possuem suficiente força para lidar com a corrupção, com a superstição e com a crueldade.Somente a fé, a determinação, o despertar e um enorme sonho poderão criar uma energia forte o suficiente para ajudar a nossa sociedade a lidar com esta situação difícil e a caminhar para a paz e para a esperança.O budismo é a forma mais forte de humanismo que possuímos. Ele surgiu em nossas vidas de forma que pudéssemos aprender a viver com responsabilidade, com compaixão e com bondade. Cada praticante budista deveria ser um protetor do meio ambiente. Temos o poder de decidir o destino de nosso planeta. Se despertarmos para a nossa verdadeira situação, haverá uma mudança coletiva em nossas consciências. Temos que fazer algo para que as pessoas despertem. Temos que ajudar o Buddha a despertar as pessoas que estão vivendo em um sonho.Tudo o que existe, mesmo o Buddha, está sempre em mudança e se desenvolvendo. Agradecendo a nossa prática de observar profundamente, percebemos que o sofrimento do nosso tempo é diferente daquele sofrimento do tempo de Siddharta Gautama e, assim, os métodos de prática deveriam também ser diferentes. Este é o motivo pelo qual o Buddha dentro de nós deveria se desenvolver de várias formas de sorte que ele pudesse ser adequado para o nosso tempo.O Buddha de nosso tempo pode usar um telefone, mesmo um telefone celular, porém ele está livre desse telefone celular. O Buddha da nossa época sabe como ajudar a evitar os danos ecológicos e o aquecimento global. Ele não destruirá a beleza do planeta e nem nos fará desperdiçar o nosso tempo competindo uns com os outros. O Buddha do nosso tempo oferece ao mundo uma ética global de sorte que todos possam colocar-se de acordo com um bom caminho a seguir. Ele quer restaurar a harmonia, cultivar a irmandade, proteger todas as espécies do planeta, evitar o desmatamento e reduzir a emissão de gases que produzem o efeito estufa.Como você é a continuação do Buddha, você deveria ajudá-lo a oferecer ao mundo um caminho que possa evitar a destruição do ecossistema e um caminho que possa reduzir a violência e o desesperança. Seria ótimo que você pudesse ajudar o Buddha a continuar realizando o que ele iniciou há 2.600 anos.O nosso planeta Terra possui uma enorme variedade de vida e cada espécie depende das outras espécies para ser capaz de se manifestar e de continuar a existir. Não estamos fora de cada um, mas estamos dentro de cada um. É muito importante segurar a Terra em nossos braços e em nossos corações para preservar este belo planeta e para proteger todas as espécies. O Sutra do Lótus menciona o nome de um bodhisattva especial – Dharanimdhara -, ou o Sustentador da Terra, alguém que preserva e protege a Terra.O Sustentador da Terra é a energia que está nos segurando juntos como um organismo. Ele é um engenheiro ou um arquiteto cuja tarefa é criar espaço para que possamos viver nele, edificar pontes para que possamos cruzar de um lado para o outro e construir estradas para que possamos ir ver as pessoas que amamos. A sua tarefa é promover a comunicação entre os seres humanos e as outras espécies de animais e proteger a Terra e o meio ambiente. Diz-se quequando o Buddha tentou visitar a sua mãe, Mahamaya, foi o bodhisattva Dharanindhara quem construiu o caminho pelo qual o Buddha viajou. Embora o bodhisattva Sustentador da Terra seja mencionado no Sutra do Lótus, não há um capítulo dedicado inteiramente a ele. Deveríamos reconhecer este bodhisattva com o objetivo de colaborar com ele. Todos nós deveríamos ajudar a criar um novo capítulo para ele porque o Sustentador do Mundo é desesperadamente necessárionesta era da globalização.Quando você contempla uma laranja, você compreende que tudo nela participa de sua composição. Não somente os gomos da laranja pertencem à laranja. A casca e as sementes da laranja são também partes da laranja. Isto é o que denominamos o aspecto universal da laranja. Tudo na laranja é a laranja, mas a casca permanece a casca, as sementes permanecem as sementes e os gomos permanecem os gomos da laranja. O mesmo é verdade com o nosso globo terrestre. Embora nos tornemos uma comunidade mundial, os franceses continuam a ser franceses, os japoneses continuam a ser japoneses, os budistas continuam a ser budistas e os cristãos continuam a ser cristãos. A casca da laranja continua a ser a casca e os gomos nãoforam transformados na casca da laranja para que houvesse a harmonia.A harmonia, entretanto, será impossível se não tivermos uma ética global e aquela que o Buddha delineou são os Cinco Treinamentos da Plena Consciência.Estes são o caminho que deveríamos seguir nesta era de crise global porque eles são a prática da irmandade, da compreensão e do amor, a prática da nossa proteção e a proteção do planeta. Os treinamentos da plena consciência são a realização concreta da plena consciência. Eles não são sectários. Eles não carregam a marca de qualquer religião, de qualquer raça em particular ou de alguma ideologia. A sua natureza é universal.Quando você pratica os Cinco Treinamentos da Plena Consciência, você se torna um bodhisattva que ajuda na criação da harmonia, na proteção do meio ambiente, na defesa da paz e no cultivo da irmandade. Você não somente defende as belezas da sua própria cultura, mas também defende as belezas das outras culturas e todas as belezas existentes sobre a face da Terra. Com o Cinco Treinamentos da Plena Consciência em seu coração, você já está no caminho da transformação e da cura.No Primeiro Treinamento, votamos por proteger toda a vida na Terra e não apoiar qualquer ato de sua destruição. No Segundo Treinamento, nos empenhamos em praticar a generosidade e não apoiar qualquer injustiça social ou opressão. No Terceiro Treinamento, nos comprometemos em nos comportar com responsabilidade em nossos relacionamentos e a não nos empenhar em conduta sexual imprópria. O Quarto Treinamento nos solicita que pratiquemos a falaamorosa e a audição profunda para aliviar o sofrimento dos outros seres.A prática do consumo e da alimentação plenamente consciente é objeto do Quinto Treinamento:Ciente do sofrimento causado pelo consumo não plenamente consciente, voto pelo cultivo da boa saúde, tanto física quanto mental, para mim mesmo, para minha família e para a minha sociedade através da prática da alimentação, da ingestão de bebidas e do consumo plenamente consciente. Voto por ingerir somente itens que preservem a paz, o bem-estar e a alegria no meu corpo, em minha consciência, no corpo coletivo e na consciência da minha família e dasociedade. Estou determinado a não utilizar álcool ou qualquer outro elemento tóxico ou a ingerir comida ou outros itens que contenham toxinas, como certos programas de televisão, revistas, livros, filmes e conversas. Estou ciente de que prejudicar o meu corpo e a minha consciência com estes venenos é trair os meus ancestrais, os meus pais, a minha sociedade e as gerações futuras. Trabalharei para transformar a violência, o medo, a raiva e a confusão em mim mesmo e nasociedade através da prática de uma dieta para mim e para a sociedade. Entendo que uma dieta apropriada seja crucial para a auto-transformação e para a transformação da sociedade.O Quinto Treinamento é o caminho que nos conduz à solução da difícil situação em que o mundo se encontra. Quando praticamos o Quinto Treinamento, reconhecemos exatamente o que consumir e o que recusar para manter os nossos corpos, as nossas mentes e a Terra saudáveis e não causar sofrimento para nós mesmos e para os outros. O consumo plenamente consciente é o caminho para nos curar e para curar o mundo. Como uma família espiritual e uma família humana, podemos todos ajudar a evitar o aquecimento global seguindo esta prática.Deveríamos todos nos tornar conscientes da presença do bodhisattva Sustentador da Terra em cada um de nós. Deveríamos nos tornar as mãos e os braços do Sustentador da Terra para que possamos ser capazes de agir rapidamente. Podemos ter ouvido falar que Deus está dentro de nós e que o Buddha está também dentro de nós. Mas ainda assim temos uma vaga noção de que o Buddha e Deus estejam dentro de nós. Na tradição budista isto está muito claro. O Buddhareside dentro de nós como energia – a energia da consciência, a energia da concentração e a energia do insight – que conduzirá à compaixão, ao amor, à alegria, à contigüidade e a não discriminação. Os nossos amigos da tradição cristã falam sobre o Espírito Santo como sendo a energia do Buddha. Onde quer que o Espírito Santo esteja haverá cura e amor. Podemos falar da mesma forma da plena consciência, da concentração e do insight. A energia da plena consciência, da concentração e do insight propicia o surgimento da compaixão, do perdão, daalegria, da transformação e da cura. Esta é a energia de um Buddha. Se você estiver imerso nesta energia, você é um Buddha. Esta energia pode ser cultivada e pode manifestar-se integralmente em você. É maravilhoso perceber que somos todos parte de uma única família e que somos exatamente como crianças sobre a Terra. Todos deveriam tomar conta uns dos outros e do meio ambiente. Isto é possível através da prática da contigüidade. Uma mudança positiva na consciência individual conduzirá a uma mudança positiva na consciência coletiva. Proteger o planeta deve ser a nossa prioridade fundamental. Espero que você utilize o seu tempo para sentar e tomar chá com os seus amigos e com a sua família e, então, discutir esses assuntos. Convide o Bodhisattva Sustentador do Mundo para sentar e colaborar com você. Tome estadecisão e aja para salvar o nosso belo planeta Terra. Mudar a sua forma de viver trará imediatamente para você muita alegria. Assim, o processo de cura poderá ter início.

A História do Budismo Engajado

Palestra sobre o Dharma proferida por Thich Nhat Hanh - Vietnã (Hanói), 6-7 de maio de 2008

(Tradução para a língua portuguesa por Fernando Domicildes Carvalho para a Comunidade de Budismo Plena Consciência)

No início do retiro de sete dias realizado em Hanói, em língua inglesa, Thich Nhat Hanh proferiu um raro vislumbre dos princípios de sua carreira. Este extrato das duas palestras sobre o Dharma revela o Thây como um mestre, um ativista social, um escritor prolífico e um defensor revolucionário do Budismo Engajado também denominado, nos dias atuais, de Budismo Aplicado.
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No ano de 1949, fui um dos fundadores do Instituto Budista An Quang na cidade de Ho Chi Ming e professor da primeira classe de noviços. O templo era muito simples, pois fora construído com bambu e sapé. O nome do templo era realmente Ung Quang. Um mestre do Dharma veio de Danang, o Venerável Tri Huu, e ambos construímos o templo de Ung Quang. A guerra se desenrolava entre os franceses e o movimento de resistência vietnamita. Cinco anos depois, em 1954, o acordo de Genebra foi assinado e o país foi dividido em duas partes: o norte comunista e o sul anticomunista. Mais de um milhão de pessoas migraram da região norte para a região sul, dentre eles muitos católicos.
Havia muita confusão no país. No templo de Ung Quang, de tempos em tempos, recebíamos soldados franceses que vinham nos visitar. Depois da batalha de Diem Biem Phu, a guerra com os franceses chegara ao fim e havia um acordo no sentido de que o país deveria ser dividido e os franceses deveriam se retirar do Vietnã. Eu me lembro de ter conversado muito com os soldados franceses. Muitos deles vieram e morreram no Vietnã.
Um novo olhar sobre o Budismo
Em 1954, havia uma grande confusão nas mentes das pessoas vietnamitas, especialmente os jovens – monges, monjas e praticantes leigos. A região norte era inspirada pela ideologia marxista-leninista. Na região sul, o Presidente católico Ngo Dinh Diem tentava conduzir o país com outro tipo de ideologia denominada "personalismo".
O Budismo é uma tradição muito antiga no Vietnã e a maioria das pessoas vietnamitas possui as sementes budistas. O senhor Vu Ngoc Cac, jornalista e administrador de um jornal diário, me pediu que escrevesse uma série de artigos sobre o budismo. Ele queria que eu produzisse insights na direção espiritual que deveríamos tomar para lidar com a grande confusão existente no país. Assim, escrevi uma série de dez artigos com o título "Um novo olhar sobre o Budismo".
Foi nesta série de dez artigos que propus a idéia de um Budismo Engajado – um Budismo relacionado com a educação, com a economia, com a política, etc. Desta forma, o Budismo Engajado teve o seu início no ano de 1954.
Naquela época, eu não utilizava uma máquina de escrever e escrevia à maneira antiga. Eles vinham, levavam o artigo e publicavam-no sempre na primeira página utilizando um enorme título com a cor vermelha. O jornal vendia muito bem porque as pessoas estavam sedentas por este tipo de saber. Elas procuravam por uma direção espiritual porque a confusão era muito grande por todo o país.
Chá de rosa e milho tenro
Esta série de artigos foi publicada em livro posteriormente. Não muito tempo depois, visitei a cidade de Hue. O senhor Du Tam, que havia estado nas minhas salas de aula no Instituto Budista Ung Quang, era o editor de uma revista budista. O seu templo estava instalado em uma pequena ilha do Rio Perfume, Huong Giang, onde era cultivado um tipo de milho muito saboroso. Ele me convidou para permanecer algumas semanas em seu templo. Todas as manhãs ele me oferecia chá com um tipo de rosa – uma minúscula flor que produzia um aroma muito delicado quando colocado no chá. Todas as manhãs nós realizávamos a meditação caminhando através da vizinhança e comprávamos milhos tenros. Ele me alimentava com chá de rosa e milho tenro e também queria que eu escrevesse outra série de artigos sobre o Budismo Engajado! (risos).
De fato, escrevi esta outra série de dez artigos intitulados "Budismo de Hoje" também sobre o tema Budismo Engajado. Esta série foi traduzida para o francês por Le Vinh Hao, um estudioso que vive em Paris. O título que ele deu ao livro foi "Aujourdui'hui le Boudhisme" (Budismo de Hoje).
Em 1964, quando visitei a América para proferir uma série de conferências, encontrei Thomas Merton, um monge trapista. Presenteei-lhe com uma cópia do "Aujourdui'hui le Boudhisme" e ele escreveu, posteriormente, uma resenha para o livro.
O Budismo que se introduz na vida
Nos anos de 1963-64, eu estava ensinando Budismo na Universidade de Columbia. A luta liderada pelos budistas em defesa dos direitos humanos levou ao fim o regime do residente Diem. Talvez vocês tenham ouvido falar do Venerável Thich Quang Duc que se imolou no fogo e atraiu para si a atenção de todo o mundo ao denunciar a violação dos direitos humanos no Vietnã. Aquele foi um gesto totalmente não-violento em defesa dos direitos humanos. Quando o regime do Presidente Diem caiu, os meus colegas me solicitaram que voltasse para o meu país natal e ajudasse as pessoas.
Assim fiz. Fundei a Universidade Van Hanh e publiquei um livro com o título de Budismo Engajado, uma reunião de vários artigos que havia escrito anteriormente.
Penso que esta seja a primeira vez que vocês tomam conhecimento dessa informação. (risos)
Isto está ocorrendo no início do ano de 1964. Eu havia escrito estes artigos antes destes fatos, mas eu os juntei e os editei sob o título de Budismo Engajado ou Dao Phat di vao cuoc doi. Cuoc doi significa "vida" ou "sociedade". Di vao significa "entrar".
Assim, estas foram as palavras que utilizei no Vietnã para Budismo Engajado - di vao cuoc doi ("introduzindo-se na vida social").
Seis meses depois, editei um novo livro com o título de Dao Phat hien dai hoa "Budismo Atualizado" ou "Budismo Renovado". Ele era a atualização do budismo chinês. Assim, todos os termos e os documentos estão relacionados com aquilo que denomino "Budismo Engajado". Após a edição deste livro, escrevi muitos outros livros tal como o Budismo do Amanhã. (risos)
No entanto, já naquela época, o meu nome fora banido do país pelo governo do Vietnã do Sul, um governo anticomunista, por causa das minhas atividades pela paz e pela reconciliação entre as regiões norte e sul. Eu me tornei uma persona non grata. Eu não poderia voltar para o meu país natal e deveria me considerar no exílio.
Assim, o meu livro Budismo do Amanhã não poderia ser publicado no Vietnã com o meu nome. Utilizei um nome originário da região das montanhas - "Bsu Danlu". Vocês poderão se admirar de onde este nome se originou. No ano de 1956, fundamos um centro de prática nas montanhas altas do Vietnã e que foi denominado de Monastério das Folhas de Palmeira Perfumadas – Phuong Boi. Compramos a terra de dois habitantes destas montanhas K'briu e K'broi. O nome da aldeia onde o monastério estava situado era Bsu Danlu.
Sabedoria Aqui e Agora
Continuei a publicar os meus livros no Vietnã com muitos outros nomes. Escrevi e publiquei uma história do budismo vietnamita em três densos volumes com o nome de
Nguyen Lang. Assim, embora estivesse fora do país por trinta e nove anos, continuei a escrever livros e alguns deles foram publicados no Vietnã sob nomes diferentes.
Como dissemos, o primeiro significado de Budismo Engajado é o tipo de budismo que está presente em cada momento de nossas vidas diárias. Enquanto você escova os dentes, o budismo deve estar presente. Enquanto você dirige o seu carro, o budismo deve estar presente. Enquanto você caminha pelo supermercado, o budismo deve estar presente de forma a que você saiba o que comprar e o que não comprar.
Além disso, o Budismo Engajado é o tipo de sabedoria que responde a tudo o que acontece aqui e agora – o aquecimento global, as alterações climáticas, a destruição do nosso ecossistema, a falta de comunicação, as guerras, os conflitos, os suicídios, os divórcios, etc. Enquanto praticantes da plena consciência, temos que estar cientes do que acontece com o nosso corpo, com os nossos sentimentos, com as nossas emoções e com o meio em que vivemos. Isto tudo é o Budismo Engajado. Ele é o tipo de Budismo que responde ao que acontece aqui e agora.
Uma nova compreensão sobre as Quatro Nobres Verdades
Podemos falar sobre o Budismo Engajado em termos das Quatro Nobres Verdades. A Primeira Nobre Verdade é dukkha – mal-estar. Tradicionalmente, os mestres budistas têm falado da Primeira Nobre Verdade desta forma - a velhice é sofrimento, a doença é sofrimento, a morte é sofrimento, a separação de quem se ama é sofrimento, abandonar a quem se ama é sofrimento e desejar algo e não obtê-lo é sofrimento. Porém, estas são formas antigas de descrever as Quatro Nobres Verdades. Hoje, quando praticamos a plena consciência, temos que identificar o tipo de mal-estar que realmente está presente. Inicialmente, percebemos que há um tipo de tensão no corpo e muito stress. Podemos dizer que o sofrimento de hoje envolve tensão, stress, ansiedade, medo, violência, famílias destruídas, suicídio, guerra, conflito, terrorismo, destruição do nosso ecossistema, aquecimento global, etc.
Deveríamos estar totalmente presentes no aqui e no agora e reconhecer a verdadeira identidade do mal-estar. A tendência natural é esquivar-se do sofrimento e do mal-estar. Não queremos enfrentar o sofrimento e, assim, tentamos escapar dele. No entanto, o Buddha nos recomendava a não proceder desta forma. De fato, ele nos encorajava a olhar profundamente a natureza do sofrimento com o objetivo de aprender com ele. O seu ensinamento mostra que, se você não compreende o sofrimento, não poderá compreender o caminho da transformação que conduz à cessação do sofrimento. Todos sabem que a Primeira Nobre Verdade se refere ao mal-estar e a Quarta Nobre Verdade diz respeito ao caminho que conduz à cessação do mal-estar. Sem compreender a Primeira Nobre Verdade, você nunca terá a oportunidade de compreender o caminho que conduz à cessação do mal-estar.
Você deveria aprender a voltar ao momento presente para reconhecer o mal-estar e como ele se apresenta. Quando praticamos e olhamos profundamente para a Primeira Nobre Verdade – o mal-estar – descobrimos a Segunda Nobre Verdade, as suas raízes e a sua gênese.
Cada um de nós tem que descobrir por si próprio as causas do mal-estar. Suponha que estejamos falando da nossa vida agitada – atualmente, temos muito a fazer e muito a alcançar. Tal como um político, um homem de negócios e mesmo um artista, queremos sempre realizar mais e mais. Almejamos o sucesso. Não temos a capacidade de viver profundamente cada momento da nossa vida. Não damos ao nosso corpo uma oportunidade de relaxar e de curar-se.
Se soubermos viver como um Buddha, residindo no momento presente e permitindo que os elementos restauradores e saudáveis penetrem nos nossos corpos, então, não nos tornaremos vítimas do stress, da tensão e dos mais variados tipos de doenças.
Podemos afirmar que uma das raízes do mal-estar é a nossa incapacidade de viver profundamente as nossas vidas a cada momento.
Quando apresentamos muita tensão e irritação, não podemos ouvir as outras pessoas. Não podemos utilizar a fala amorosa. Não podemos remover as percepções erradas. Por essa razão, as percepções erradas originam o medo, o ódio, a violência, etc. Temos que identificar as causas do nosso mal-estar. Esta é uma tarefa muito importante.
Suponha que estejamos falando do suicídio ou das famílias destruídas. Sabemos que quando a comunicação se torna difícil entre o marido e a esposa, entre o pai e o filho, entre a mãe e a filha as pessoas deixam de ser felizes. Muitos jovens entram em desespero e querem suicidar-se. Eles não sabem como tratar o desespero ou as suas emoções e pensam que a única forma de interromper o sofrimento é matar-se a si próprio. Na França, a cada ano, cerca de doze mil jovens cometem suicídio, somente porque não conseguem lidar com as suas emoções tal como o desespero. E os seus pais não sabem como ajudar os seus filhos. Eles não os ensinam a controlar os seus sentimentos e mesmo os professores não sabem como ajudar os seus alunos a reconhecer e a manter sob controle, de forma suave, as suas emoções.
Quando as pessoas não podem se comunicar, elas não se compreendem mutuamente, não percebem o sofrimento dos outros e não vivem o amor e nem a felicidade. A guerra e o terrorismo nascem também das percepções erradas. Os terroristas pensam que os seus adversários estão tentando destruí-los enquanto uma religião diferente, um outro modo de vida e uma nação distinta. Se acreditarmos que a outra pessoa está tentando nos matar, nós procuraremos os meios para matá-la antes que sejamos mortos por ela.
O medo, a compreensão enganosa e as percepções incorretas são o alicerce de todos estes atos violentos. A guerra no Iraque, denominada de antiterrorista, não tem ajudado a reduzir o número de terroristas. De fato, o número de terroristas está aumentando continuamente por causa da guerra. Para eliminar o terrorismo, você tem que eliminar as percepções incorretas. Sabemos muito bem que os aviões, as armas e as bombas não podem eliminar as percepções incorretas. Somente a fala amorosa e a audição compassiva podem ajudar as pessoas a corrigir as suas percepções incorretas. No entanto, as nossas lideranças não estão capacitadas nesses assuntos e elas confiam somente nas forças armadas para eliminar o terrorismo.
Assim, ao olharmos profundamente para estes assuntos, podemos ver a elaboração do mal-estar e as suas raízes. Olhar profundamente significa reconhecer o mal-estar como uma verdade e observar intimamente a sua natureza.
A Terceira Nobre Verdade refere-se à cessação do mal-estar. Isto significa a presença do bem-estar – assim como a ausência da escuridão significa a presença da luz. Quando a ignorância não está mais presente, a sabedoria surge. Quando você remove a escuridão, a luz surge. Assim, a cessação do mal-estar significa a presença do bem-estar que é o oposto da Primeira Nobre Verdade.
Os ensinamentos do Buddha confirmam a verdade de que o bem-estar é possível. Porque existe o mal-estar, o bem-estar é possível. Se o mal-estar é descrito inicialmente em termos de tensão, stress e aflição, então o bem-estar é descrito como claridade, paz e relaxamento – la détente. Com o seu corpo, a sua respiração, os seus pés e a plena consciência vocês poderão reduzir as tensões e produzir relaxamento, claridade e paz.
Podemos falar sobre a Quarta Nobre Verdade em termos muito concretos. Os métodos de prática nos possibilitam reduzir as tensões, o stress e a infelicidade. Os mestres atuais do Dharma podem querer chamá-la de caminho do bem-estar. A cessação do mal-estar significa o início do bem-estar – é assim tão simples! Partindo de muitos Deuses para nenhum Deus Eu gostaria de voltar um pouco na história do Budismo Engajado.
Nos anos 1950, comecei a escrever porque as pessoas precisavam de uma direção espiritual que as ajudasse a superar a enorme confusão existente. Um dia escrevi sobre o relacionamento entre as crenças religiosas e os caminhos que trilhamos em nossa sociedade. Descrevi a história da evolução da nossa sociedade. Inicialmente, a nossa sociedade foi organizada em grupos de pessoas denominadas tribos. Com o passar do tempo, muitas tribos se juntaram e estabeleceram finalmente reinos, administrados por um rei. Então, chegou o momento em que tínhamos muitos reis e criamos as democracias e as repúblicas.
As nossas crenças religiosas mudaram muito durante este percurso histórico. Em primeiro lugar, tínhamos algo paralelo ao estabelecimento das tribos – o politeísmo, a crença que afirma que existem muitos deuses e cada um deles possui um poder. Você tem a liberdade de escolher um deus para venerar e ele irá protegê-lo contra os outros deuses e contra as outras tribos.
Quando formamos os reinos, as nossas crenças religiosas mudaram também – surgiu o monoteísmo. Existe somente um Deus - o mais poderoso Deus - e você deveria venerar somente um Deus e não muitos deuses.
Quando as democracias surgiram, os reinos deixaram de existir. Neste novo regime político, todos são iguais entre si e confiamos uns nos outros para viver. Este é o motivo pelo qual o monoteísmo está mudando para a crença na interdependência – interser – onde não existe mais lugar para um Deus. Somos inteiramente responsáveis pelas nossas vidas, pelo nosso mundo e pelo nosso planeta. Escrevi sobre estes assuntos durante o tempo em que estava tentando construir o Budismo Engajado.
Surgimento da Ordem do Interser
No ano de 1964, estabelecemos a Ordem do Interser. O seu surgimento é muito significativo. Tínhamos que somente estudar os Quatorze Preceitos ou os Treinamentos da Plena Consciência para compreender o motivo e como a Ordem do Interser foi estabelecida. Naquela época, a guerra transcorria ferozmente. Era um conflito entre ideologias.
A região norte e a região sul tinham cada uma delas a sua própria ideologia. Um lado era marxista-leninista e o outro era personalista e capitalista. Não somente lutávamos por ideologias importadas do exterior, mas também lutávamos com armas importadas do exterior – armas e bombas da URSS, da China e da América. Enquanto Budistas que praticavam a paz, a reconciliação e a irmandade não queríamos aceitar esta guerra. Vocês não podem aceitar uma guerra na qual irmãos matam irmãos com ideologias e armas importadas do exterior.
A Ordem do Interser nasceu como um movimento de resistência espiritual. Ela foi inteiramente baseada nos ensinamentos do Buddha. O Primeiro Treinamento da Plena
Consciência – desapego a pontos de vista e liberdade frente a todas as ideologias – era uma resposta direta para a guerra. Todos os combatentes estavam dispostos a morrer e a matar pelas suas crenças.
O Primeiro Treinamento da Plena Consciência afirmava: "Cientes do sofrimento criado pelo fanatismo e pela intolerância, estamos determinados a não ser idólatras sobre qualquer doutrina, teoria ou ideologia mesmo sendo elas Budistas..." Este foi o rugido do leão!
"Os ensinamentos Budistas são meios que nos orientam e nos ajudam a aprender a olhar profundamente e a desenvolver a nossa compreensão e a nossa compaixão.
Eles não são doutrinas com as quais se lute, mate ou morra". Os ensinamentos do Buddha constantes do Sutra Nipata a respeito de pontos de vista são muito claros. Não devemos nos apegar a nenhum ponto de vista e temos que transcender a todos eles.
A Visão Correta, antes de tudo, significa a ausência de todos os pontos de vista. O apego a pontos de vista é uma fonte de sofrimento. Suponha que você suba uma escada e no quarto degrau pense que já atingiu o grau mais elevado. Você estará preso a este pensamento! Você tem que se livrar do quarto degrau para ser capaz de ir para o quinto degrau. Sendo científico, os cientistas têm que se livrar do que descobriram para que possam obter uma verdade mais elevada. Este é o ensinamento do Buddha - Quando você considera algo como sendo a verdade e você se apega a ela, você deve abandoná-la para obter um nível mais elevado.
A noção básica do Budismo é o desapego com relação a pontos de vista. A sabedoria é não apegar-se a pontos de vista. O insight não é um ponto de vista. Nós deveríamos estar prontos para abandonar as nossas idéias para que o verdadeiro insight seja possível. Suponha que você tenha noções sobre a impermanência, o nãoself, o interser e as Quatro Nobres Verdades. Isto pode ser perigoso, pois isto tudo são somente pontos de vista. Você está muito orgulhoso porque conhece algo sobre as Quatro Nobres Verdades, sobre o interser, sobre a originação interdependente, sobre a plena consciência, sobre a concentração e sobre o insight. Mas, este ensinamento é somente um meio para que você obtenha o insight. Se você estiver apegado a estes ensinamentos, você estará perdido. O ensinamento sobre a impermanência, o não-self e o interser existem para ajudá-lo a obter o insight da impermanência, do não-self e do interser.
O Buddha afirmava "O meu ensinamento é como um dedo apontando para a Lua.
Você deve agir com habilidade. Você olha na direção apontada pelo meu dedo e poderá ver a Lua. Se você considerar o meu dedo como a Lua, você nunca verá a Lua". Assim o BuddhaDhamma não é a verdade. Ele é somente um instrumento para que você obtenha a verdade. Esta é uma noção elementar do Budismo. A guerra é o resultado do apego a pontos de vista e ao fanatismo. Se você olhar profundamente na natureza da guerra do Iraque, você poderá ver que ela é também uma guerra religiosa. As pessoas estão utilizando as suas crenças religiosas para sustentar esta guerra. O Presidente Bush é apoiado por muitos cristãos ortodoxos que preconizam a doutrina evangelista. A oposição aos combatentes e aos terroristas no Iraque é endossada pelas crenças cristãs com relação ao Islam. Assim, esta é de qualquer maneira uma guerra religiosa. A paz não poderá existir se mantivermos o nosso fanatismo com relação aos nossos pontos de vista.
A flor de lótus em um mar de fogo
No ano de 1965, escrevi um pequeno livro sobre a guerra do Vietnã. O seu título era Vietnam: Lotus in a Sea of Fire (Vietnã. Flor de Lótus em Mar de Fogo) publicado pela Editora Hill e Wong nos EUA e pela Editora Paz e Terra no Brasil. A guerra transcorria furiosamente no Vietnã e se parecia com um mar de fogo. Estávamos matando uns aos outros e permitindo que os bombardeiros norte-americanos viessem e destruíssem as nossas florestas e o nosso povo. Nós permitíamos a entrada das armas chinesas e russas. O Budismo tentava fazer algo contra a guerra. Aqueles entre nós que não aceitavam a guerra queriam fazer algo para resistir a ela. E algumas vezes tínhamos que nos imolar para dizer às pessoas que não queríamos aquela guerra.
Os budistas não possuíam estações de rádio ou de televisão. Não havia meios disponíveis com os quais eles pudessem se expressar. Quem quer que esteja me ouvindo, que seja você a minha testemunha: Eu não aceito esta guerra, deixe-me dizer isto mais uma vez antes que eu morra.
Os nossos inimigos não são os homens.
Estas são algumas linhas de meus antigos poemas. Os nossos inimigos são a raiva, o fanatismo e a violência. Os nossos inimigos não são os homens. Se matarmos os homens, com quem viveremos?
O movimento pela paz no Vietnã possuía um apoio internacional muito escasso, pois vocês mal podiam ouvir o que dizíamos. Por causa disso, tínhamos que nos imolar vivos para dizer a vocês que não queríamos aquela guerra. Por favor, nos ajudem a parar com esta guerra e com o assassinato de irmãos por irmãos!, dizíamos na época. O Budismo era como uma flor de lótus tentando sobreviver em um mar de fogo. Eu traduzi o livro Vietnã. Flor de Lótus em Mar de Fogo para a língua vietnamita e um amigo americano pertencente ao movimento pela paz me ajudou a trazer o livro para o Vietnã. O livro foi impresso de forma ilegal e muitos jovens tentaram divulgá-lo e distribuí-lo como um ato de resistência à guerra.
A nossa irmã Chan Khong, uma professora de biologia da Universidade Hue, trouxe uma cópia do livro para uma amiga. Ela foi presa e colocada em uma prisão porque ela possuía uma cópia deste livro. Posteriormente, ela foi transferida para uma prisão em Saigon.
A Escola de Serviço Social para a Juventude
Meus amigos jovens pediam que eu publicasse os meus poemas sobre a paz. Eles os denominavam de poesia anti-guerra. Eu concordei com estes jovens e disse-lhes que se quisessem publicá-los que o fizessem. Eles reuniram cinqüenta ou sessenta poemas sobre a paz e os submeteram ao governo do Vietnã do Sul. Cinqüenta e cinco poemas foram censurados. Somente alguns poucos restaram autorizados para publicação. No entanto, os nossos amigos não se desencorajaram e publicaram os poemas ilegalmente. Este livro de poesias vendeu muito bem! Mesmo alguns policiais da polícia secreta do Vietnã do Sul gostavam dele, porque estes policiais também sofriam com a guerra. Os meus amigos jovens iam até as livrarias e diziam "Vocês não devem deixar estes livros à mostra! Vocês devem escondê-los atrás do balcão". (risos)
As estações de rádio de Saigon, Hanói e Pequim começaram a atacar os poemas porque eles pediam a paz. Ninguém queria a paz. Todos queriam lutar até o fim. No ano de 1964, fundamos uma Escola de Serviço Social para a Juventude. Ensinamos milhares de jovens, incluindo monges e monjas, a irem para a zona rural e ajudarem os camponeses na reconstrução das suas aldeias. Ajudávamos os alunos em quatro aspectos: educação, saúde, economia e organização. Nossos trabalhadores sociais iam para as aldeias, brincavam com as crianças e ensinavam-nas a ler, a escrever e a cantar. Quando as pessoas das aldeias passavam a nos admitir em seu convívio, sugeríamos a construção de uma escola para as crianças. Uma família doava os bambus e outra família doava as folhas de côco para a construção da cobertura da escola. Assim, iniciávamos a construção de uma escola. Os nossos trabalhadores não ganhavam um salário. Após a construção da escola na aldeia, construíamos um dispensário onde podíamos distribuir remédios rudimentares que ajudassem os moradores das aldeias. Levávamos para as aldeias os estudantes de medicina ou um médico e tentávamos ajudar os moradores durante um ou dois dias. Também
organizávamos cooperativas e tentávamos ajudar os aldeões no trabalho da produção de artesanato para que ele pudesse aumentar a renda da família.
Tínhamos que começar com nós mesmos. A escola de Serviço Social para a Juventude foi fundada com o espírito de que não precisávamos esperar pela ajuda governamental.
Uma Nova Organização da Juventude na Europa
Ensinamos muitos jovens e inclusive jovens monges e monjas. Finalmente, tínhamos mais de dez mil trabalhadores desde Quang Tri até a região sul. Durante a guerra, éramos responsáveis por mais de dez mil órfãos. Todos estes jovens faziam parte do Budismo Engajado.
Neste ano de 2008, pretendemos estabelecer uma organização de jovens budistas na Europa – Jovens Budistas para uma Sociedade Saudável e Compassiva. Muitos jovens vêm até nós para participar de nossos retiros na Europa, na América e na Ásia.
Agora, queremos organizar estas pessoas. Elas utilizarão os Cinco Treinamentos para a Plena Consciência como a sua prática e se comprometerão com a ajuda na construção de uma sociedade mais saudável e mais compassiva. Se os meus amigos, aqui, sentem-se inspirados pela idéia, quando voltarem para as suas casas, por favor, convidem os jovens para estabelecer um grupo dos Jovens Budistas para uma Sociedade Saudável e Compassiva.
Nos mês passado de abril de 2008, fomos para a Itália e tivemos um dia de prática com os jovens na cidade italiana de Nápoles. Quinhentos jovens, homens e mulheres, que vieram até nós gostaram muito dessa idéia. Eles estão prontos para se comprometer com a prática da paz e com a ajuda na construção de uma sociedade mais saudável e mais compassiva.
Nossos jovens monges e monjas se envolverão também na construção dessa organização.
Fundação de um Instituto Europeu de Budismo Aplicado
Fundamos também um Instituto Europeu de Budismo Aplicado. Espero que, durante este retiro, nossa Irmã Annabel possa apresentar para vocês o Instituto Europeu de Budismo Aplicado. Deveremos também ter alguns campi do Instituto na América e na Ásia. Quem quer que tenha completado com sucesso o retiro de três meses em Plum Village ou no Monastério de Deer Park receberá um certificado emitido pelo Instituto.
Este Instituto irá oferecer muitos cursos interessantes. Vocês poderão ajudar na organização de cursos nas suas áreas de atuação e nós enviaremos um mestre do Dharma. Um exemplo de curso é aquele de vinte e um dias para jovens rapazes e moças que estão se preparando para constituir uma família. Nele, estes jovens aprenderão a como manter uma vida conjugal de forma satisfatória.
Haverá cursos para aqueles indivíduos que têm um diagnóstico de AIDS ou de câncer, de forma que eles possam aprender a viver com as suas doenças. Se você souber como aceitar e viver com a sua doença, você será capaz de viver vinte, trinta ou mais anos. Haverá, também, cursos para homens de negócios, para professores escolares, etc.
Estes certificados de conclusão dos cursos poderão ajudar a todos a se tornar professores oficiais do Dharma. Algum dia, vocês poderão ser inspirados a se tornar um professor do Dharma, a saírem de suas casas, a ajudarem as pessoas a serem uma continuação do Buddha.
Nos dias de hoje, utilizamos a expressão "Budismo Aplicado" que é somente outra maneira de se referir ao Budismo Engajado.

(Palestra transcrita por Greg Server e editada por Janelle Combelic e Irmã Annabel.)

quarta-feira, 4 de março de 2009

“Qual é meu desejo mais profundo na vida?”

No livro Serenando a Mente – O olhar budista sobre o medo e o terrorismo, Thich Nhat Hanh nos fala sobre “Alimentar a Paz”. Conta que “o Buda falou sobre a senda da emancipação em termos de consumo. No discurso sobre a Carne do Filho o Buda ensinou que nós consumimos quatro tipos de nutrimentos. Se sempre estivermos cientes do que consumimos e compreendermos a sua natureza, poderemos transformar o sofrimento dentro de nós e à nossa volta. Consumir conscientemente é essencial para pôr fim ao terrorismo”.
Em nossa reunião desse último domingo, estudamos o Terceiro Nutrimento: o nosso desejo mais profundo, cujo texto segue abaixo. Os demais nutrimentos são: 1o.) alimento comestível; 2o.) alimento sensorial e 4o.) consciência.

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O Terceiro Nutrimento: nosso desejo mais profundo
O terceiro tipo de alimento é a volição, nosso desejo mais profundo. Temos de perguntar-nos: “Qual é meu desejo mais profundo na vida?” Nosso desejo pode levar-nos rumo à felicidade ou rumo ao sofrimento. O desejo é um tipo de alimento que nos nutre e nos fornece energia. Se você tiver um desejo salutar, como a vontade de proteger a vida e o meio ambiente ou a de viver uma vida singela com tempo para cuidar de si mesmo e de seus entes queridos, ele lhe mostrará o caminho da felicidade. Se você persegue o poder, a riqueza, o sexo e a fama, achando que tudo isso lhe trará felicidade, na verdade está consumindo um alimento muito perigoso e que lhe trará muito sofrimento. Basta você olhar ao seu redor para ver que isto é verdade.
Em 1999, num retiro para executivos, muitos deles reconheceram que gente com grande riqueza e muito poder também sofre imensamente. Um empresário riquíssimo falou-nos de seu sofrimento e sua solidão. É o dono de uma grande empresa com mais de 300.000 empregados trabalhando no mundo inteiro, inclusive no Vietnã. Ele contou que pessoas muito ricas são com freqüência extremamente solitárias porque desconfiam dos demais. Elas acham que todos o que se aproximam delas declarando amizade estão apenas atrás de seu dinheiro e só buscam tirar vantagem. Essas pessoas sentem que não têm verdadeiros amigos. Os filhos de gente rica também sofrem profundamente; é comum seus pais não terem tempo para eles por estar muito preocupados em manter a riqueza.
Anos atrás, num retiro que realizamos em San Diego, na Califórnia, dois artistas famosos compareceram. Eram Peter, vocalista da banda Peter, Paul and Mary, e Julie Christie, atriz de cinema. Ambos disseram-nos que a fama não os fazia felizes. A felicidade deles decorria de serem capazes de retornar para o próprio coração e a própria mente e realmente exercitarem essa prática. Odette Lara, a estrela do cinema brasileiro, participou de um retiro na Califórnia no início da década de 80 e, mais tarde, escreveu-me uma carta. “Caro Thây. Eu pensava que minha árvore já estava morta porque durante muito tempo não tive desejo algum no meu coração. Esta manhã, porém, ao acordar, eu senti de repente um novo desejo, um novo rebento brotando da árvore que eu supunha sem vida”.
O Buda tinha um desejo muito profundo, mas não era de dinheiro, fama, poder nem sexo. Siddhartha, que se tornou o Buda, tivera o bastante disso quando era príncipe. Seu desejo era o de transformar todo o seu sofrimento, ser feliz e ajudar outros a sofrerem menos. Ele não queria seguir os passos de seu pai e virar rei ou político. Depois de 2.600 anos, o Buda ainda nos ajuda. Ao tornar-se monge, Siddhartha passou a viver de maneira muito simples: ele tinha apenas três túnicas e uma tigela e ia andando para todos os lugares. Assim viveu por quarenta anos. Trouxe felicidade para si e para inúmeras pessoas sem desejar a riqueza, sexo, poder nem fama.
Para ilustrar o terceiro tipo de alimento, o Buda deu o exemplo de um jovem que tinha muita vontade de viver, mas se deparou com dois homens fortes que queriam matá-lo. Eles o arrastaram até a borda de um poço com carvão em brasas e, apesar de ele ter lutado e resistido, finalmente conseguiram vencê-lo e o jogaram no poço. O Buda disse que nosso desejo é como aqueles dois homens fortes. Nossos desejos podem arrastar-nos para um poço de carvão em brasa ou podem conduzir-nos à felicidade, à saúde e à paz. Se permitir que o desejo de riqueza, sexo, poder, fama ou vingança lhe domine, você será arrastado por aqueles dois brutamontes para o poço cheio de brasas. Pergunte-se para onde seu desejo está lhe conduzindo. De que natureza é esse desejo? É de ter uma casa maior, melhor emprego, um diploma, fama, posição elevada na sociedade, ou é algo mais profundo? Não deixe que seu desejo seja pequeno. Ele deve ser muito grande. Se seu desejo não for grande, você será desviado por muitos desejos menores.
Tome alguns minutos para anotar seu desejo mais profundo. Quer viver como pessoa livre sem preocupações ou ânsias? O desejo de ser uma pessoa livre é muito valioso. Ser livre significa deixar de ser vítima do medo, da ira, da ânsia ou da suspeita. É isso o que você quer? Talvez você queira, mas não o bastante. Você tem outros desejos que se interpõem, por exemplo querer uma casa maior, um carro mais possante ou comida mais gostosa. Esses pequenos desejos o distraem de seu desejo mais nobre. Se o desejo de liberdade de Siddhartha não fosse vigoroso, ele não teria conseguido vencer os desejos sensuais. Se quiser realizar seu desejo profundo, você tem de desejá-lo realmente.
Pode ser que você deseje melhor comunicação com seu parceiro. Talvez você tenha dificuldades com essa pessoa e já não consiga olhar nos olhos dela. Talvez você deseje um relacionamento mais próximo com seus filhos. Quando você e sua família são felizes, você tem condições de ajudar outras pessoas e também seu país. Muito queremos ajudar nosso país e a raça humana como um todo. No entanto, distraímo-nos com facilidade porque nosso ambiente não nutre suficientemente esse desejo. Tornar-se monge é, de certa forma, como participar de uma revolução: é preciso estar disposto a desistir de tudo porque se deseja profundamente a libertação.
Cultivando a compaixão
Há quem passe a vida inteira tentando vingar-se. Este tipo de desejo ou volição resulta em grande sofrimento não só para outros como para a própria pessoa que o nutre. O ódio é um fogo que arde em toda alma e só pode ser mitigado pela compaixão. Mas onde encontramos compaixão? Ela não está à venda no supermercado. Se estivesse, bastaria levá-la para casa para se acabar com o ódio e a violência no mundo com muita facilidade. Mas só com nossa prática podemos produzir compaixão no próprio coração.
Neste momento, os Estados Unidos estão sendo consumidos pelo medo, o sofrimento e o ódio. Nem que seja para aliviarmos nosso sofrimento, temos de nos voltar para nós mesmos e tentar compreender por que estamos presos em tamanha teia de violência. O que faz com que os terroristas odeiem tanto que estão dispostos a sacrificar suas vidas e causar enorme sofrimento a outrem? Nós vemos que eles odeiam intensamente, mas o que subjaz a esse ódio? É claro que temos de achar uma maneira de parar a violência deles, e talvez até precisemos manter gente na prisão enquanto seu ódio se consome. Mas o importante é fazermos um exame profundo e perguntar-nos qual a responsabilidade que nos cabe pela injustiça no mundo?
Às vezes alguém a quem amamos – um filho, cônjuge ou pai – diz ou faz alguma coisa cruel e com isso nós sofremos e ficamos com raiva. Pensamos que apenas nós sofremos. Mas essa outra pessoa também está sofrendo. Se não estivesse sofrendo, não teria falado ou agido por raiva. A pessoa que amamos não sabe como se livrar do sofrimento. É por isso que ela despeja todo seu ódio e sua violência sobre nós. Nossa responsabilidade é gerar a energia de compaixão que acalma o coração e nos permite ajudar a outra pessoa. Se a punirmos, ela simplesmente sofrerá ainda mais.
Responder à violência com violência só pode resultar em mais violência, mais injustiça e mais sofrimento, não só para os outros como para nós. Há sabedoria em todos e em cada um de nós. Quando respiramos fundo, podemos alcançar essa semente da sabedoria dentro de nós. Sei que se a energia da sabedoria e da compaixão no povo americano fosse nutrida durante uma semana, isso bastaria para reduzir o nível de raiva e ódio no país. Recomendo que todos pratiquemos a calma e a concentração mental, regando as sementes de sabedoria e compaixão que já temos em nós e aprendendo a arte do consumo atentivo. Se conseguirmos fazer isso, faremos uma verdadeira revolução pacífica, o único tipo de revolução que pode ajudar-nos a sair desta situação tão difícil.
Talvez algumas pessoas achem misteriosa a vida dos monges. Mas tudo o que fazemos no mosteiro é exercitar-nos em produzir compaixão e contemplar todas as espécies com olhar compassivo e amoroso. Para isto nós devemos ser muito cuidadosos quanto ao que consumimos. Quer estejamos comendo uma tigela de arroz, desfrutando de um campo florido ou nutrindo nosso desejo mais profundo, nós o fazemos tão atentamente quanto possível, cientes de cada respiração.


segunda-feira, 2 de março de 2009

Energias Formadoras de Hábitos

A função da consciência armazenadora
É receber e manter
As sementes e as energias formadoras de hábitos.
De modo que elas possam se manifestar no mundo ou
permanecer inativas.
(Thich Nhat Hanh - Transformações na Consciência)

(Texto estudado pela sangha na reunião do domingo de carnaval 2009)
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As sementes que recebemos de nossos ancestrais, dos amigos e da sociedade ficam guardadas na nossa consciência, assim como a terra guarda as sementes que nela caem. Da mesma maneira que as sementes na terra, as sementes que estão na nossa consciência armazenadora estão escondidas de nós. Nem sempre entramos em contato com elas. Somente quando se manifestam na nossa consciência mental é que tomamos conhecimento delas. Quando nos sentimos felizes, podemos pensar que não existem sementes de raiva em nós. Mas tão logo alguém nos irrita, nossa semente da raiva se faz conhecer.
Energia formadora de hábito é um termo importante na psicologia budista. Nossas sementes carregam as energias formadoras de hábitos de milhares de anos. O termo em sânscrito para energia formadora de hábito, vashana, significa "permear", "impregnar". Para fazer chá de jasmim, é necessário pegar flores de jasmim, juntá-las com folhas de chá e colocá-las dentro de uma caixa, a qual deve permanecer fechada por várias semanas. A fragrância do jasmim penetra profundamente nas folhas e o chá então vai cheirar a jasmim, porque absorveu o aroma das flores. Nossa consciência armazenadora também tem uma grande capacidade de receber e absorver "fragrâncias" ou "perfumes".
Essa impregnação na nossa consciência, das energias formadoras de hábitos levadas pelas sementes, afeta nossos padrões de visão, sentimento e comportamento. As sementes que estão na nossa consciência se manifestam não só de forma psicológica mas também como objetos de nossa percepção - montanhas, rios, outras pessoas. Devido às energias formadoras de hábitos, não podemos perceber as coisas como realmente elas são. Interpretamos tudo o que vemos ou ouvimos em termos de nossas energias formadoras de hábitos. Se você amassa uma folha de papel, é difícil fazê-la ficar lisa novamente. Ela adquire a energia formadora do hábito de ficar amassada. Nós também somos assim.
Quando encontramos uma pessoa, o que encontramos realmente é a nossa própria energia formadora de hábito, que nos impede de ver qualquer coisa. Talvez, na primeira vez em que encontramos essa pessoa, tenhamos tido uma reação negativa a seu respeito. Com base nessa reação, formamos uma energia formadora de hábito ao nos relacionarmos com essa pessoa e, a partir de então, continuamos a fazê-lo da mesma forma. Toda vez que a encontramos, vemos a mesma velha pessoa, ainda que ela tenha mudado completamente. Nossas energias formadoras de hábitos nos mantêm incapazes de perceber a realidade do momento presente.
Somos influenciados pelas ações e crenças de nossos pais e da sociedade. Mas nossas reações às coisas têm seus próprios padrões e neles ficamos presos. Nossas energias formadoras de hábitos são fruto de nosso comportamento, formado por nossas reações às coisas e também por nosso ambiente. Quando uma pessoa é criada num determinado ambiente, uma energia formadora de hábito é formada. Hoje em dia, muitas crianças têm a energia formadora do hábito de assistir televisão. Quando são levadas a algum lugar onde não há televisão, ficam infelizes. Um menino que vio a Plum Village, ao descobrir que não havia televisão, queria que sua mãe o tirasse dali. Nós o convencemos a ficar a metade de um dia e, durante esse tempo, muitas outras crianças brincaram com ele. Depois de algumas horas, ele concordou em ficar mais tempo. Acabou ficando durante três semanas. Ele descobriu que poderia ser feliz sem televisão.
Essa é uma boa notícia. É possível mudarmos nossas energias formadoras de hábitos. E de fato, para as transformar, precisamos mudá-las. Muito embora tenhamos as melhores intenções de transformar a nós mesmos, não seremos bem-sucedidos enquanto não trabalharmos nossas energias formadoras de hábitos. A maneira mais fácil de fazê-lo é com uma Sangha, um grupo de pessoas que, juntas, praticam a plena consciência. Se nos colocarmos em um ambiente em que possamos praticar em profundidade com outras pessoas, seremos capazes de alterar nossas energias formadoras de hábitos. Pela prática da plena consciência, podemos identificar as sementes que estão em nós e reconhecer as energias formadoras de hábitos que as acompanham. Com plena consciência, podemos observar nossas energias formadoras de hábitos e começar a transformá-las.
Se nossa família e nossos amigos são instáveis, o comportamento deles também "impregna" a nossa consciência. Por isso, é importante escolher cuidadosamente com quem passamos nosso tempo. Quando conversamos com alguém que é infeliz, nossa consciência armazenadora recebe as sementes de seu sofrimento. Se não tivermos o cuidado de manter nossas sementes saudáveis durante a conversa, o sofrimento dessa pessoa vai regar as sementes de sofrimento que estão em nós e nos sentiremos exauridos.
A prática da plena consciência nos permite criar energias formadoras de hábitos novas e mais funcionais. Suponhamos que, ao ouvirmos uma certa frase, façamos uma careta. Não é queiramos fazê-la, ela apenas acontece automaticamente. Para substituir essa antiga energia formadora de hábito por uma nova, toda vez que ouvirmos aquela frase devemos respirar conscientemente. No início, o respirar consciente requer esforço. Não vem naturalmente. Entretanto, se continuarmos a praticar, a respiração consciente se tornará uma energia formadora de hábito. Da mesma maneira, criamos qualquer hábito novo. Quando você começa a escovar os dentes depois das refeições, no início, pode esquecer algumas vezes de fazê-lo. Depois de um tempo, isso se torna um hábito e você se sente desconfortável quando não os escova.
Algumas energias formadoras de hábitos são difíceis de transformar. Fumar é uma energia formadora de hábito difícil de deixar. A plena consciência é a chave. Sempre que tivermos fumando, devemos praticar a plena consciência para ficarmos cientes de que estamos fumando. Nossa conscientização dessa energia formadora de hábitos se aprofundará a cada dia, e veremos que estamos destruindo os nossos pulmões. Veremos, então, a ligação entre nossos pulmões, nossa saúde e as pessoas que amamos. Compreendemos que cuidar de nós mesmos é também cuidar dos que amamos. Então, pelo bem deles e pelo nosso, tomamos a decisão de cuidar do nosso corpo. A plena consciência promove esses tipos de discernimento.
Beber é outra energia formadora do hábito. Talvez, sempre que nos sentimos tristes, recorremos a um copo de vinho para esquecer a tristeza. Com plena consciência, cada vez que levantamos nosso copo de vinho, dizemos: "Eu sei que estou bebendo um copo de vinho". Quando nossa plena consciência ficar mais forte, quando bebemos o vinho podemos dizer: "Eu sei que estou triste". À medida que a nossa percepção aumenta e vemos com maior profundidade a tristeza que está por trás da nossa energia do hábito de tomar vinho, seremos capazes de começar a transformar as sementes de tristeza em nós.
A felicidade também pode ser uma energia formadora de hábito. Quando praticamos meditação andando, cada passo que damos nos traz paz e alegria. Quando começamos a praticar a meditação andando, podemos ter que fazer algum esforço. Não estamos ainda habituados a ela. Mas um dia começamos naturalmente a sentir paz e alegria. Então pensamos: "Por que estive sempre com tanta pressa?". Uma vez que nos sintamos à vontade com a meditação andando e outras maneiras de nos mover com plena consciência, essas práticas se tornarão um hábito salutar.
Embora existam energias positivas formadoras de hábito, parece que os hábitos negativos se estabelecem mais rapidamente que os positivos. Na escola, nossos filhos estão expostos tanto aos hábitos bons quanto aos maus, mas parece que aprendem os hábitos maus mais rapidamente. Demora muito tempo para uma pessoa jovem aprender a gostar de Shakespeare, mas não leva muito tempo para aprender a ingerir álcool. Quando você ensina algo para uma criança, talvez tenha que repetir muitas vezes até que a semente seja plantada solidamente na consciência dela. Quando você pinta uma parede, a primeira camada não é suficiente. Tem que pintar uma segunda e uma terceira vez. É assim que aprendemos.
Temos que reconhecer, abraçar e transformar nossas energias formadoras de hábito negativas e nos treinar para ter mais energias de hábito positivas. Tive a felicidade de, no início da minha vida, aprender o bom hábito de praticar meditação sentada todos os dias para me acalmar e cultivar mais estabilidade, solidez e liberdade. Muitos de nós em Plum Village aprendemos o hábito de voltar à nossa respiração e sorrir toda vez que ouvimos o sino tocar. Esses hábitos positivos precisam ser cultivados, porque nossos hábitos negativos sempre nos empurram para fazer e dizer coisas que causam sofrimento a nós e aos outros.