quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Quem é o Buda?

O texto abaixo é a tradução livre de um conto escrito por Thây especialmente para crianças - e para a criança que existe dentro de cada um de nós.


Há alguns anos, visitei uma aldeia na Índia chamada Uruvela. Dois mil e seiscentos anos atrás, um homem chamado Sidarta viveu perto dessa aldeia. Sidarta é o homem que mais tarde ficou conhecido como Buda.

A aldeia de Uruvela continua bem parecida ao que era naquela época. Não há prédios grandes, nem supermercados, nem estradas. É muito agradável. As crianças de lá também não mudaram. Quando Sidarta vivia ali, as crianças da aldeia fizeram amizade com ele e levavam-lhe alimentos e presentinhos.
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Há um rio que passa perto da aldeia. É ali que Sidarta costumava banhar-se. Um tipo de grama conhecida como "kusa" ainda cresce às margens do rio. É o mesmo tipo de grama que uma das crianças deu a Sidarta para usar como almofada e se sentar. Caminhei, cruzei o rio, cortei um pouco dessa grama "kusa" e trouxe-a para casa comigo.

Do outro lado do rio há uma floresta. É ali que Sidarta se sentava para meditar, embaixo de uma árvore chamada "árvore Bodhi". Foi sob essa árvore que ele se tornou "Buda".

Um Buda é qualquer pessoa que esteja desperta – consciente de tudo o que acontece dentro de si e ao seu redor - qualquer pessoa capaz de compreender e amar profundamente. Sidarta tornou-se um ser plenamente consciente – um Buda. É o Buda que nós aceitamos como nosso mestre. Segundo ele, cada um de nós traz uma semente do despertar dentro de si e todos somos futuros Budas.

Quando era bem jovem, um de meus alunos não conseguia encontrar uma resposta para a pergunta "Quem é o Buda?". Este aluno se chamava Hu e esta é sua história.

Aos seis ou sete anos, Hu perguntou para seu pai e sua mãe se poderia tornar-se monge. Hu adorava ir ao templo budista. Costumava freqüentá-lo com os pais nos dias de lua nova, de lua cheia, e oferecia flores, bananas, mangas e todos os tipos de frutas exóticas ao Buda.

No templo, Hu era sempre tratado com carinho. Quando as pessoas iam ao templo, pareciam mais à vontade e mais amigas. Hu também percebeu que o abade ia com a sua cara. Todas as vezes ganhava uma banana ou uma manga. É por isso que Hu gostava tanto de ir ao templo.
Um dia, disse: "Mãe, quero ser monge e viver no templo". No fundo, acho que Hu queria virar monge porque gostava de comer banana. Não o culpo. No Vietnã há muitas variedades de bananas deliciosas!

Apesar de ser jovem, seu pai e sua mãe concordaram em deixá-lo viver no templo como noviço. O abade deu-lhe uma bonita túnica e ele ficou igualzinho a um monge-bebê.

Assim que foi ordenado monge, Hu ainda acreditava que Buda adorava bananas, mangas e tangerinas porque todos os que freqüentavam o templo levavam bananas, mangas, tangerinas e outras frutas e colocavam-nas em frente ao Buda. Na cabecinha de Hu, isto só poderia significar uma coisa: o Buda adorava frutas!

Uma noite, ficou esperando no templo até que todos os visitantes fossem embora. Permaneceu bem quietinho perto da entrada da sala do Buda. Olhou bem para ver se não havia ninguém. Em seguida, espiou dentro da sala. A estátua do Buda era grande como uma pessoa de verdade! Para Hu, a estátua era o próprio Buda.

Hu achava que o Buda ficava sentado, parado o dia inteiro e, quando a sala se esvaziava… vupt, agarrava uma banana! Hu esperou e observou, na esperança de ver o Buda pegar uma das bananas à sua frente. Esperou muito tempo, mas o Buda não pegou nenhuma banana. Hu ficou inconformado! Não entendia por que o Buda não comia nenhuma das bananas oferecidas pelas pessoas...

Hu não tinha coragem de perguntar ao abade, pois temia que o abade o achasse tolo. Na realidade, muitas vezes nos sentimos assim. Não nos atrevemos a perguntar por medo que os outros nos chamem de bobos. O mesmo acontecia com Hu. E, justamente porque não tinha coragem de perguntar, ficava confuso. Eu teria perguntado a alguém. Hu, no entanto, não perguntou a ninguém.

Hu foi crescendo e um dia se deu conta de que a estátua do Buda não era o Buda. Que revelação! Ficou muito feliz. Porém, surgiu uma nova dúvida: "Se o Buda não está aqui, então onde está? Se o Buda não está no templo, onde está o Buda?" Todos os dias via pessoas chegando ao templo e fazendo reverências à estátua do Buda. Mas onde estava o Buda?

No Vietnã, as pessoas que praticam o Budismo Terra Pura acreditam que os Budas permanecem na Terra Pura, na direção do Oeste. Um dia, Hu ouviu alguém dizer que a Terra Pura era o lar dos Budas. Isto fez com que Hu acreditasse que o Buda estava na Terra Pura, o que o deixou muito triste. Pensou, "Por que será que o Buda escolheu viver tão longe das pessoas?" Isto gerou mais dúvidas em sua cabeça.

Conheci Hu quando ele tinha quatorze anos e continuava pensando nisso. Expliquei-lhe que o Buda não está longe de nós. Disse-lhe que o Buda está dentro de cada um de nós. Ser um Buda significa estar consciente do que acontece dentro de nós e ao nosso redor o tempo todo. Buda é o amor e a compreensão que trazemos em nossos corações. Isto deixou Hu muito feliz.

Quando Hu cresceu, tornou-se diretor da Escola de Assistência Social no Vietnã. Treinou monjas, monges e jovens para ajudarem a reconstruir as aldeias bombardeadas durante a Guerra do Vietnã.

Sempre que você vir amor e compreensão, o Buda estará lá. Qualquer um pode ser um Buda. Não pense que o Buda é uma estátua ou alguém com uma auréola sobre a cabeça ou com um manto amarelo. Um Buda é uma pessoa consciente do que ocorre dentro e si e ao seu redor - alguém com muita compreensão e compaixão. Pode ser homem ou mulher, jovem ou não tão jovem, mas um Buda é sempre uma pessoa que gostamos de ter ao nosso lado, alguém com alegria de viver.

Tradução livre do conto "Who is the Buddha?", do livro A Pebble for Your Pocket. Editora: Plum Blossom Books

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

O Porão e a Sala de Estar

Na reunião desse último domingo, lemos e discutimos um trecho do livro Aprendendo a Lidar com a Raiva, do mestre Thich Nhat Hanh, publicado pela Ed. Sextante, que trata da importância da plena consciência para abraçar e cuidar de nossas energias negativas.

Durante nossas discussões, propusemos que esta semana estejamos atento à nossa raiva, procurando identificar seu surgimento e suas causas. Leiam ou releiam o texto estudado e bom proveito.

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O porão e a sala de estar
Vamos representar a nossa consciência como uma casa. Podemos identificar duas partes: o porão é a consciência de armazenagem e a área social é a consciência da mente. As formações internas, como a raiva, encontram-se na consciência de armazenagem – no porão – sob a forma de uma semente. Quando ouvimos, vemos, lemos ou pensamos em algo que toque a semente, ela se manifesta no nível da mente consciente – a sala de estar -, fazendo a atmosfera da sala ficar pesada e desagradável. Quando a energia da raiva se faz presente, nós sofremos.
Sempre que a raiva se manifesta, o praticante de meditação imediatamente convida a energia da plena consciência também a se manifestar, através da prática do andar ou da respiração conscientes. Desse modo, outra zona de energia – a energia da plena consciência – é criada, restabelecendo a leveza da sala de estar. É extremamente importante aprender a prática de andar, respirar, fazer qualquer atividade do nosso cotidiano com plena consciência. Desse modo, sempre que uma energia negativa se manifestar, saberemos como gerar a energia da plena consciência para abraçá-la e cuidar dela.

A mente também precisa de uma boa circulação
Nosso corpo contém toxinas e, quando o sangue não circula bem, essas toxinas se acumulam em certos lugares. Para permanecer saudável, nosso organismo precisa expelir essas toxinas. A massagem estimula a circulação do sangue. Quando o sangue circula bem, ele é capaz de nutrir órgãos como os rins, o fígado e o pulmão para que eles possam expulsar as toxinas do corpo. Por conseguinte, é importante termos uma boa circulação. Beber muita água e praticar a respiração profunda também ajuda a expelir toxinas do corpo, através da pele, do pulmão, da urina e das fezes. Todas as práticas que ajudam a eliminar toxinas do nosso sistema são extremamente importantes.
Suponhamos agora que certa parte do meu corpo esteja doendo muito, porque uma grande quantidade de toxinas se acumulou nesse local. Esse ponto é doloroso cada vez que o tocamos, como também causa dor quando tocamos um nó interno na mente. Quando nos dedicamos à prática da plena consciência, usamos essa energia para massagear uma formação interna. Você pode ter um bloco de sofrimento, dor, mágoa ou desespero em você, e ele é uma toxina na sua consciência. Você precisa praticar a plena consciência para poder abraçar e transformar essa toxina.
Abraçar a dor e a mágoa com a energia da plena consciência é exatamente a prática de massagear a nossa consciência, tal como fazemos com o nosso corpo. A circulação da nossa consciência pode estar deficiente. Quando o sangue não circula bem, nossos órgãos não conseguem funcionar adequadamente e nossa mente adoece. A plena consciência é uma energia que estimula e acelera a circulação através dos blocos de dor.

Ocupando a Sala de Estar
Nossos blocos de dor, mágoa, raiva e desespero sempre querem subir para a consciência da mente – a sala de estar -, porque cresceram e precisam da nossa atenção. Eles querem emergir, mas não queremos que isso aconteça, porque sentimos dor ao olhar para eles. Tentamos então obstruir seu caminho, querendo que eles continuem adormecidos no porão. Como não desejamos enfrentá-los, enchemos a sala de estar com outros convidados. Mas acontece que sempre que temos dez ou quinze minutos de tempo livre, e não sabemos o que fazer, esses nós internos conseguem subir e fazem uma enorme bagunça na sala de estar. Para evitar que isso aconteça, pegamos um livro, ligamos a televisão, chamamos gente, vamos dar uma volta de carro, fazemos qualquer coisa para encher de novo nossa sala de estar de convidados porque, quando ela está ocupada, as formações internas de que temos medo conseguem sair do porão. Temos mesmo muito medo, porque acreditamos que, se as deixarmos circular e subir, vamos sofrer muito.
Mas as formações mentais precisam circular, e quando as impedimos continuamente, criamos uma má circulação na nossa psique, o que faz aparecer os sintomas de doenças mentais e de depressão. Eles se manifestam tanto no corpo quanto na mente.
Às vezes, quando temos dor de cabeça, tomamos aspirina, mas a dor não passa. Esse tipo de dor de cabeça pode ser sintoma de uma doença mental. De vez em quando temos crises de alergia e pensamos que se trata de um problema físico, mas a alergia também pode ser sintoma de uma doença mental. Se tomamos remédios para eliminar os sintomas, deixamos de tomar contato com nossas formações internas, o que só faz piorar a doença.

Como fazer os convidados indesejáveis se sentirem em casa
Quando removemos os obstáculos e os blocos de dor conseguem subir, sofremos com isso. Não há como evitar esse sofrimento, e foi por esse motivo que Buda disse que temos que aprender a abraçar a dor através da prática da plena consciência. Com isso, geramos uma forte fonte de energia para reconhecer, abraçar e cuidar das energias negativas, dos nós internos. Depois de serem abraçados durante algum tempo, eles voltarão ao porão e se tornarão de novo sementes.
Sempre que você envolve seus nós internos com a plena consciência, os blocos de dor se tornam mais leves e menos ameaçadores. Por isso, envolva todos os dias sua raiva, seu desespero e seu medo com a plena consciência – dedique-se a esta prática. Quando a plena consciência não está presente, é muito desagradável receber a visita dessas sementes, mas, se você souber gerar a energia da plena consciência, será muito benéfico convidá-las para subir todos os dias e abraçá-las. Depois de convidá-las para subir durante vários dias ou semanas e ajudá-las a descer de novo, você cria uma boa circulação na sua psique e os sintomas da doença mental começam a desaparecer.
Não tenha medo dos seus nós de sofrimento. Deixe que a plena consciência os massageie, para que eles circulem, e você possa abraçá-los e transformá-los.


“Aprendendo a Lidar com a Raiva – Thich Nhat Hanh – Ed. Sextante”


terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

2008 - Segundo Retiro de Plena Consciência


De 12 a 14 de setembro de 2008 realizamos o segundo retiro de Plena Consciência, no Centro Mandala - Itatiba - SP, com a condução dos queridos monges Thich Phap Hai e Phap Luu, do Monastério Deer Park - EUA, da tradição do Venerável Mestre Thich Nhat Hanh.

Com todas as vagas preenchidas, o retiro proporcionou dias maravilhosos na presença dos veneráveis irmãos e participantes, quando tivemos a oportunidade de compartilhar conhecimentos, experiências, além de diversas práticas de meditação, alimentação em plena consciência e atividades para integração do grupo.

A fala correta

Em nossa época, as técnicas de comunicação são muito sofisticadas. Enviamos notícias para o outro lado do planeta com facilidade e rapidez. Ao mesmo tempo, a comunicação entre as pessoas se torna cada vez mais difícil. Os pais não conseguem falar com seus filhos, os maridos com suas mulheres e os sócios com seus parceiros. A comunicação parece estar bloqueada. Estamos numa situação difícil, não apenas entre países, mas também entre pessoas. A prática do Quarto Treinamento da Atenção Plena é muito importante.
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O enunciado clássico da Fala Correta é o seguinte:
(1) Falar sempre a verdade. Quando uma coisa é azul nós dizemos que ela é azul, e não roxa.
(2) Não falar coisas contraditórias deliberadamente. Não dizemos uma determinada coisa a uma pessoa e uma coisa diferente a outra pessoa. É claro que podemos descrever a verdade de várias formas, para que o ouvinte entenda o que estamos dizendo, mas é preciso ser sempre fiel à verdade.
(3) Não falar com crueldade. Não gritamos, não caluniamos, não amaldiçoamos, não provocamos sofrimento nem geramos ódio. Mesmo aqueles que têm um bom coração e não querem ferir ninguém muitas vezes permitem que saiam palavras tóxicas de sua boca. Nós carregamos em nós as sementes do Estado de Buda juntamente com os grilhões das formações mentais. Quando dizemos algo venenoso, isso em geral se origina da força do hábito. As palavras são muito poderosas. Elas podem gerar um complexo em uma pessoa, tirar sua vontade de viver, ou mesmo conduzir alguém ao suicídio. É preciso não se esquecer disto.
(4) Não exagerar nem retocar os fatos. Não devemos dramatizar desnecessariamente, querendo que as coisas pareçam melhores, piores ou mais urgentes do que realmente são. Se alguém está um tanto irritado, não diremos que está furioso. A prática da Fala Correta consiste em tentar mudar nossos hábitos, para que nossas palavras venham da semente de Buda que existe em nós, e não das sementes doentias ou indesejáveis.

A Fala Correta se baseia no Pensamento Correto. A fala é o nosso pensamento, expresso sob a forma de som. Quando falamos, nossos pensamentos deixam de ser particulares. Oferecemos aos outros fones de ouvido, permitindo que ouçam a fita de áudio que toca em nossa mente. É claro que existem coisas que pensamos e não dizemos, e uma parte de nós faz o papel de censor. Às vezes, quando um amigo ou terapeuta nos confronta com uma pergunta inesperada, acabamos sem querer dizendo a verdade que pretendíamos esconder.

Algumas vezes, os blocos de dor que existem incrustados dentro de nós se expressam na fala (ou nos atos), sem terem antes passado pelo pensamento. Ou seja, o sofrimento acumulado já não pode mais ser reprimido, especialmente quando não se pratica a Atenção Plena Correta. Quando expressamos dor, podemos ferir a nós mesmos ou aos outros, mas se não praticarmos a Atenção Plena Correta não saberemos o que está se acumulando dentro de nós. Por isso, terminamos por dizer ou escrever coisas que não queríamos, e não sabemos de onde essas palavras vieram. Não queremos realmente ferir ninguém, mas acabamos dizendo coisas que ferem. Temos a intenção de só dizer palavras de reconciliação e perdão, e logo em seguida dizemos algo cruel. Para regar as sementes da paz que existem em nós, precisamos praticar a Atenção Plena Correta enquanto estamos caminhando, sentados, de pé etc. Com a Atenção Plena Correta conseguimos ver claramente nossos pensamentos e sentimentos, e identificar o que nos ajuda e o que nos machuca. Quando os pensamentos saem de nossa mente sob a forma de palavras, se a Atenção Plena Correta os acompanhar teremos consciência do que dizemos, e se isto é útil ou pernicioso.

O alicerce da Fala Correta é ouvir com atenção. Se não conseguimos escutar com consciência, não podemos praticar a Fala Correta. Não importa o que dissermos, estaremos apenas relatando nossas próprias idéias, sem realmente responder ao que o outro disse. No Sutra do Lótus somos aconselhados a olhar e ouvir com os olhos e ouvidos da compaixão. A escuta compassiva auxilia a cura. Quando alguém nos ouve desta forma, sentimos alívio imediato. Um bom terapeuta sempre pratica a escuta compassiva. Temos que aprender a também fazer a mesma coisa, para poder ajudar aqueles que amamos, resgatando a comunicação com eles.

Quando a comunicação é cortada, todos sofremos. Quando ninguém nos ouve ou entende, viramos uma bomba prestes a explodir. Restaurar a comunicação é uma tarefa urgente. Às vezes bastam dez minutos de escuta atenta para transformar uma pessoa e devolver o sorriso aos seus lábios. Bodhisattva Kwan Yin é aquela pessoa que ouve os lamentos do mundo. Ela tem a qualidade do verdadeiro ouvinte compassivo, que não julga nem reage. Quando ouvimos com todo o nosso ser, conseguimos desarmar diversas bombas-relógio. Se a outra pessoa acha que estamos criticando o que ela está dizendo, seu sofrimento não será aliviado. Quando o psicoterapeuta pratica o Ouvir Correto, seus pacientes têm a coragem de lhe dizer coisas que nunca disseram antes a ninguém. A escuta verdadeira nutre quem fala e quem ouve.

Nós já perdemos, em geral, a capacidade de ouvir e falar amorosamente em família. Talvez as pessoas já não consigam mais ouvir umas às outras, e por isso nos sentimos sós, mesmo estando em família. Por isso fazemos terapia, na esperança de que o terapeuta nos ouça. Mas muitos terapeutas também carregam consigo uma dor profunda, e às vezes não conseguem ouvir tão bem quanto gostariam. Assim, se você ama alguém, tente aprender a ser um bom ouvinte. Torne-se um terapeuta. Você será o melhor terapeuta do mundo para a pessoa que ama, se conseguir aprender a arte da escuta atenta e compassiva. Além disso, é preciso aprender a falar com amor. Já perdemos a capacidade de dizer as coisas com calma, e nos irritamos com demasiada facilidade. A cada vez que abrimos a boca, nossa fala soa amarga ou azeda. Sabemos que isso é verdade, que perdemos a capacidade de falar com bondade. Este é o Quarto Treinamento da Atenção Plena, fundamental para a manutenção de relacionamentos pacíficos e amorosos. Se você não conseguir aprender isto, também não conseguirá atingir a felicidade, a harmonia e o amor. É por isso que a prática do Quarto Treinamento da Atenção Plena é tão importante.

Muitas famílias, casais e relacionamentos se rompem porque perderam a capacidade de ouvir uns aos outros com serenidade e compaixão. Não sabemos mais usar a fala calma e amorosa. O Quarto Treinamento da Atenção Plena é fundamental para restaurar a comunicação entre nós. É uma grande dádiva poder aplicar o Quarto Treinamento à arte de ouvir e de falar amorosamente. Por exemplo, um membro da família talvez esteja sofrendo muito, mas mesmo assim ninguém se senta calmamente para ouvi-lo. Se existir alguém na família capaz de ouvir com o coração, pelo menos durante uma hora, a pessoa que sofre terá a sensação de que sua dor foi aliviada. Se você sofre e ninguém o escuta, o sofrimento permanece lá. Mas, ao contrário, se alguém o ouve e compreende, você começa imediatamente a sentir o alívio de ser ouvido por alguém.

No budismo, falamos do Bodhisattva Avalokiteshvara, Kwan Yin, aquele que tem a capacidade de ouvir com compaixão e atenção total. "Kwan Yin" significa aquele que ouve e entende o som do mundo, os seus gritos de dor. Os psicoterapeutas tentam fazer a mesma coisa. Sentam-se em silêncio, cheios de compaixão e ouvem o paciente. Isto quer dizer que não vão criticar, julgar, condenar nem avaliar, mas simplesmente ouvir com o propósito único de ajudar a pessoa a sofrer menos. Se você for ouvido desta forma por uma única hora, vai se sentir muito melhor. Mas é preciso que os psicoterapeutas pratiquem, para serem capazes de manter a compaixão, a concentração e a escuta profunda em qualquer circunstância. Se não for assim, a qualidade da escuta não será boa e não conseguirá ajudar a pessoa a se sentir melhor.

É preciso praticar a respiração consciente, inspirando e expirando, para que a compaixão permaneça em você. "Estou ouvindo esta pessoa não apenas porque me interesso pelo que acontece com ela, ou para oferecer conselhos. Estou ouvindo porque quero aliviar seu sofrimento." Esta é a escuta compassiva. Você precisa ouvir de forma tal que a compaixão permaneça em você o tempo todo. Esta é a verdadeira arte. Se no meio da escuta surgir raiva ou irritação, você não conseguirá continuar escutando. Nossa prática consiste em perceber cada vez que a raiva ou a irritação surgirem, e inspirar e expirar conscientemente, mantendo a compaixão sempre presente. Só com compaixão podemos realmente ouvir uma outra pessoa. Não importa o que a pessoa está dizendo, mesmo que existam muitas informações errôneas e muita injustiça na forma como a pessoa descreve as coisas, e mesmo que ela condene ou culpe você, continue calmamente inspirando e expirando. Mantenha a sua compaixão por uma hora. Esta é a escuta compassiva, e se você conseguir mantê-la por uma hora, o outro se sentirá aliviado.

Se achar que não vai conseguir continuar a ouvir, pergunte à pessoa: "Meu amigo, será que podemos continuar daqui a alguns dias? Eu preciso me renovar, de forma a ouvi-lo melhor." Porque se você não está bem, não vai ouvir o outro da melhor forma possível. Nesse caso, pratique mais a meditação andando, a respiração consciente e a meditação sentada, para restaurar sua capacidade de escutar compassivamente. Esta é a prática do Quarto Treinamento da Atenção Plena _ aprender a ouvir com compaixão. Isso é muito importante, e também uma grande dádiva.

Algumas vezes falamos intempestivamente e criamos pontos de bloqueio nas outras pessoas. Dizemos: "Mas eu só estava dizendo a verdade." Talvez o que foi dito seja a verdade, mas se esta forma de falar causa sofrimento desnecessário, então certamente não é a Fala Correta. A verdade deve ser apresentada de uma forma que o outro seja capaz de aceitar. Palavras que ferem ou destroem não representam a Fala Correta. Antes de falar, compreenda a pessoa com quem você está falando. Considere cada palavra cuidadosamente, antes de dizer qualquer coisa, para que sua fala seja correta na forma e conteúdo. O Quarto Treinamento da Atenção Plena também está ligado à fala amorosa. Você tem o direito de dizer à outra pessoa tudo o que sente em seu coração, desde que usando apenas a fala amorosa. Se não for capaz de falar calmamente, então não fale. "Sinto muito, meu caro, mas é melhor conversar outro dia. Hoje eu não estou em meus melhores dias, e posso dizer algo que não seja bom. Vamos conversar outro dia:' Abra a boca e fale apenas quando estiver certo de que pode usar uma fala calma e amorosa. Muitas vezes é preciso nos treinarmos longamente para conseguir fazer isso.

No Sutra do Lótus, um bodhisattva chamado Som Maravilhoso conseguia falar com cada pessoa em sua língua. Se alguém entendia a linguagem da música, ele usava música. Se outra pessoa gostava da linguagem das drogas, ele falava em termos de drogas. Cada palavra dita por Som Maravilhoso abria a comunicação e ajudava as pessoas a se transformarem. Nós podemos fazer a mesma coisa, mas é necessário grande determinação e habilidade.(...)

Uma outra forma de falar é escrever cartas. Uma carta pode ser mais segura do que uma conversa, porque há mais tempo para ler o que se escreveu antes de enviar. Quando lemos nossas palavras, visualizamos a outra pessoa recebendo a carta e podemos avaliar se aquilo que escrevemos é adequado e se está bem expresso. Sua carta deve regar as sementes da transformação da outra pessoa e despertar alguma coisa em seu coração, isto pode ser chamado de Fala Correta. Se alguma frase causar mal-entendido ou descontentamento, troque-a por outra. A Atenção Plena Correta mostrará se você está expressando a verdade de um modo hábil. Depois de colocar a carta no correio, não é mais possível tirá-la de lá, por isso temos que ler bem antes de enviar. Uma carta enviada desta forma irá beneficiar tanto o remetente quanto o destinatário.

É claro que você está sofrendo, mas a outra pessoa também está. É por isso que escrever é uma prática tão boa, além de ser uma forma de contemplação profunda, porque só enviamos a carta depois de haver refletido bastante sobre o seu conteúdo. Nessa altura, você já não vai mais culpar ninguém, apenas mostrar que sua compreensão vem de um nível mais profundo. A outra pessoa está de fato sofrendo, e só isso já merece sua compaixão. Quando você começa a entender o sofrimento do outro, a compaixão surge em você e sua linguagem adquire o poder de curar. A única energia que pode nos ajudar a estabelecer uma conexão com outra pessoa é a compaixão. Quem não tem compaixão nunca será feliz. Quando pensamos na pessoa para quem estamos escrevendo, se conseguirmos enxergar uma parte de seu sofrimento, a compaixão emergirá. Nesse momento você também se sentirá melhor, até antes de terminar a carta. Depois de enviar a carta, você se sentirá melhor ainda, porque terá certeza de que aquela pessoa também irá melhorar após ler a carta. Todos nós precisamos de aceitação e compreensão. E agora você tem compreensão a oferecer. Ao escrever uma carta como essa, está restaurando a comunicação. (...)

À medida que nossa prática de meditação se aprofunda, ficamos cada vez menos presos a palavras. Aptos a praticar o silêncio, sentimo-nos livres como pássaros, em contato com a essência das coisas. O fundador de uma das escolas vietnamitas de zen budismo escreveu: "Não me perguntem mais nada, porque minha essência não usa palavras." Para conseguir praticar a fala consciente, às vezes é preciso também praticar o silêncio. Só então poderemos ter clareza sobre nossos próprios pontos de vista e sobre os bloqueios responsáveis por nossa forma de pensar. O silêncio é o momento adequado para contemplar em profundidade. Há momentos em que o silêncio é a verdade, e isso é chamado de "silêncio trovejante".

Confúcio disse: "Os céus não dizem nada." Isso também significa que os céus nos dizem muita coisa - e ainda assim não conseguimos entender. Se ouvirmos com a mente em silêncio, a canção de cada pássaro e o vento de cada árvore terão algo a nos dizer. No Sukhavati Sutra é dito que cada vez que o vento sopra nas árvores, um milagre se produz. Se escutarmos esse som cuidadosamente, ouviremos o Buda ensinando as Quatro Nobres Verdades e o Nobre Caminho Óctuplo. A Atenção Plena Correta é uma prática que também nos ajuda a desacelerar, para poder ouvir os pássaros, as árvores e até mesmo nossa própria mente. Desta forma, quando dissermos algo bondoso ou, ao contrário, palavras impacientes, sempre teremos plena consciência do que dissemos.

Palavras e pensamentos têm o poder de matar. Não devemos dar abrigo ao ato de matar nem em pensamentos nem em palavras. Se for impossível dizer a verdade em seu emprego, mude de emprego. Mas se você trabalha em um lugar onde pode dizer a verdade, seja grato. Para que a justiça social e a não-exploração possam ser praticadas, precisamos utilizar a Fala Correta.

(Do livro “A Essência dos ensinamentos de Buda” – Thich Nhat Hanh)